Este mês completaram-se 500 anos da excomunhão de Martinho Lutero pelo Papa Leão X. Pela bula papal Decet Romanum Pontificem, Leão X cumpria assim a sentença anunciada na bula anterior, a Exsurge Domine de 15 de junho de 1520, que concedera 60 dias para que Lutero renegasse as 95 teses que havia pregado à porta da igreja de Wittemberg em 31 de outubro de 1517, bem como seus textos seguintes. Até mesmo Erasmo de Rotterdam tentou dissuadir Leão X escrevendo-lhe em 13 de setembro de 1520 que a Igreja teria muito a ganhar se Lutero fosse ouvido pela Papa e este encontrasse um meio termo que evitasse a cisão eminente.
Ao final do prazo a resposta de Lutero foi literalmente incendiária: queimou a cópia da bula papal e o Código de Direito Canônico em 10 de dezembro de 1520 no Portão Elster em Wittenberg. Estava selado seu destino: menos de um mês depois, em 3 de janeiro de 1521 foi promulgada a sua excomunhão por Leão X. A partir de então não houve mais retorno. A Reforma Protestante prosseguiu conquistando mais adeptos e se espalhando por todo o mundo.
500 anos se passaram, a Igreja Católica passou por muitas transformações e muito do que Lutero escreveu tem sido revisto. O Papa João Paulo II reconheceu a profunda religiosidade de Lutero e Bento XVI por sua vez afirmou que Lutero “não intentava rachar o cristianismo, mas apenas purificar a igreja de práticas corruptas”. Em 1999 a Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial assinaram uma declaração histórica que unificava algumas de suas doutrinas. O Papa Francisco afirmou em 2016: “creio que as intenções de Martinho Lutero não fossem erradas: era um reformador. […] a Igreja não era propriamente um modelo a imitar: havia corrupção na Igreja, havia mundanidade, havia apego ao dinheiro e ao poder. E por isso ele protestou. Sendo inteligente, deu um passo em frente justificando por que motivo fazia isso. E hoje luteranos e católicos, com todos os protestantes, estamos de acordo sobre a doutrina da justificação: sobre este ponto tão importante, ele não errara. [...] hoje procuramos retomar a estrada para nos encontrarmos 500 anos depois.”
Ainda nas comemorações dos 500 anos da Reforma Protestante, o Vaticano lançou um selo comemorativo retratando Cristo crucificado ladeado por Lutero com a Bíblia e Phillip Melanchton com a Confissão de Augsburgo. Com todas essas aproximações, surge até mesmo a possibilidade da suspensão da excomunhão de Martinho Lutero pela Igreja Católica. Diversos documentos, incluindo uma carta elaborada pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) foram encaminhados em 2017 ao Papa Francisco para que se declarasse publicamente sem efeito o ato de excomunhão imposto a Lutero. Consequentemente, em janeiro de 2020, a Federação Luterana Mundial e o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos agendaram um evento conjunto em Roma em 25 de junho de 2021 para reexaminar os fatos que levaram a essa excomunhão.
Qualquer que seja a resposta do Papa Francisco, a possibilidade de uma declaração formal que acabe com 500 anos de condenações mútuas já agita os ânimos do mundo cristão. Enquanto alguns vêem nesta oportunidade a esperança de diálogo que venha a aproximar as duas vertentes do cristianismo, outros, evangélicos ou católicos, acreditam ser isto impossível e atribuem qualquer aproximação como sinais dos fins dos tempos. Ao que parece, meio milênio depois, o diálogo sereno e profícuo entre as duas maiores vertentes do cristianismo continua complexo. Mas não podemos negar que um grande passo foi dado para retomar um debate importantíssimo que há 500 anos não teve condições de acontecer.
Obrigado, Professora Lidice por tão profunda e clara exposição acerca da excomunhão de Martinho Lutero. Está aqui referido o avanço que parece hoje representar as públicas posições de Papas recentes – João Paulo II, Bento XVI e Francisco – permitindo-nos especular sobre que consequências teria havido, no seio da Cristandade, se tivesse tido lugar, como defendia Lutero, um Concílio aberto e congregador como sucedeu com o Concílio Vaticano II, de que os Papas referidos são herdeiros. Provavelmente, não teria havido "Reforma protestante"!...
Deixamos, porém, uma reflexão sobre os factos de então, pois, curiosamente, na época, em 1522, o papa Adriano VI chegou a afirmar que o Luteranismo só vingava à custa dos desvios, da devassidão e degradação moral que campeava…