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  • Foto do escritorLidice Meyer

Mulher: guardiã da religiosidade


As mulheres sempre desempenharam o papel preponderante de guardiãs e professoras da religião. Junto à mãe, avós, tias e irmãs as crianças, independentemente do sexo e da origem cultural, aprendem os primeiros passos na sociedade. São orações, canções de ninar, histórias, enfim, todo um conhecimento e práticas do universo religioso que nos é passado docemente pela via do feminino.


No mundo judaico, assim que uma criança nasce ela deve ser alimentada física e espiritualmente. A ligação entre mãe e filho é tão profunda que os judeus acreditavam que a criança só passava a ser um indivíduo separado de sua mãe após o desmame. O leite materno os unia em um único ser, uma única essência física e espiritual. Até hoje, no dia a dia junto à mãe a criança judaica é exposta constantemente à estímulos sagrados e espirituais como no preparo dos alimentos kosher e no cuidado com o shabbat, ao acender e manter acesas as velas e ainda podem dizer as orações antes das refeições. Meninas e meninos crescem aprendendo pelo exemplo do cuidado das mães com a religião.


A importância da mulher na religião israelita é corroborada pelo destaque de mulheres na linhagem sacerdotal a começar por Miriã que tem sua liderança atestada entre mulheres e homens (Ex 15.20; Nm 12.15; Mq 6.4) até as primas Isabel e Maria (Lc 1.5,36). Nestes três casos há também a manifestação do dom da profecia, ligado à proximidade e intimidade com Deus. Os relatos bíblicos da presença das mulheres servindo à porta dos templos (Êx 38.8; I Sm 2.22), na condução do louvor (Êx 15.20) e como profetisas (Êx 15.20; Jz 4.4; II Rs 22.14; Is 8.3) indicam que estas eram valorizadas em funções religiosas no judaísmo bíblico. A importância que as mulheres israelitas desenvolveram na vida religiosa familiar é comparável à importância dos sacerdotes homens na comunidade. As mulheres eram as primeiras a transmitir oralmente as orações e histórias com fundamento moral e religioso às crianças de ambos os sexos. As meninas conservavam as tradições pela memória, preparando-se por sua vez para passarem os mesmos conceitos e valores a seus respetivos filhos. Não é de se estranhar, portanto, que no cristianismo as mulheres mantivessem seu protagonismo junto às igrejas que se formavam. Os relatos no livro de Atos dos Apóstolos e nas cartas pastorais não deixam dúvida da liderança feminina instituída nas igrejas formadas em suas casas. São pelo menos oito mulheres identificadas como tendo uma igreja reunida em suas casas, expressão que denota a sua importância como líder, ainda que extraoficialmente. O apóstolo Paulo atesta o valor da mulher como guardiã dos preceitos religiosos na família referindo-se à sua importância na formação de seu discípulo Timóteo (2 Tm 1.5).


Se a mulher foi aos poucos perdendo seu lugar de protagonismo na liderança oficial das religiões, se papel no microcosmo religioso do lar só se fortaleceu. Mesmo que a maioria dos líderes nas igrejas sejam homens, a religião viva, vivida no cotidiano das pessoas ainda nos é passada pela via do feminino. São as mulheres que ainda mais fortemente detém e transmitem este conhecimento. Mães, tias, avós, biológicas ou afetivas que pelos acalantos, histórias, orações e exemplos nos transmitem o legado de sua fé e religiosidade viva. São as mulheres que alimentam o cordão umbilical que nos religa a Deus. Religião: palavra oriunda do latim religare - religar aquilo que está desconectado. E assim, através de cantigas e histórias infantis somos, quando crianças, reconduzidos a proximidade com o divino criador. Com o advento da maturidade o cordão pode ser seccionado, mas os elementos/alimentos da alma que nos foram passados por seu intermédio pela via do amor feminino farão parte sempre de nosso corpo espiritual, constituintes de nossa alma.


Sim, a religião nos é transmitida antes de tudo pela via do feminino. Que se agitem os misóginos e esbravejem toda a sua contrariedade, mas que atire a primeira pedra aquele que não traz em si a memória da fé e/ou dos valores religiosos aprendidos com sua mãe.


Lidice Meyer Pinto Ribeiro Doutora em Antropologia, Professora no Mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona em Lisboa, Portugal

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