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A teologia poética de Mathilde de Magdeburg


A poesia é uma das formas mais puras de expressão dos sentimentos. Pela poesia a linguagem metafórica traz à luz e à vida sentimentos muitas vezes inexprimíveis. A poesia já foi vista como a linguagem dos anjos e do amor (I Co 13.1) Poesia e teologia andam juntas. James Sire disse que “a beleza do poema em si indica a existência do transcendente” e que “Deus se revela por meio da arte e do conteúdo da poesia”. Deve ser por isso que ao ler o texto “Das fließende Licht der Gottheit” (A Luz que flui da Divindade) escrito pela teóloga alemã Mathilde de Magdeburg (1207-1283) é impossível não sentir-se invadido pelo calor da luz divina.

No século XII, quando a única forma de uma mulher se dedicar a Igreja era entrar para os conventos, surgiu nos países baixos um grupo de mulheres casadas e solteiras que se reuniam para estudar a Bíblia e para praticar a caridade. Ficaram conhecidas como beguinas e as casas onde se reuniam e abrigavam pobres ou doentes, como beguinários. Mathilde de Magdeburg foi uma beguina que aos trinta anos começou escrever um tratado teológico em forma de prosa e verso, diálogo e cartas. Usou o alemão em vez do latim, mais usado na época. Seu livro foi o primeiro tratado espiritual da vida cristã escrito em alemão. Como o texto demorou trinta anos para ser finalizado, partes dele começaram a circular pela Alemanha mesmo antes de estar completo e Mathilde chegou a escrever sobre as duras críticas que recebeu por ser uma mulher escrevendo em baixo alemão, considerado uma língua inferior, sobre assuntos espirituais: “Fui advertida contra escrever este livro. As pessoas disseram: Se alguém não tomar cuidado, pode ser queimada. Então fiz o que fazia quando criança. Quando estava triste, sempre precisava orar.”

Nesta ocasião, como em outras, Mathilde se refugiou na oração para aquietar o coração e ouvir a voz de Deus. Parte de seu poema “O deserto tem muitos ensinamentos” diz: “No deserto, volte-se para o vazio, fugindo de si mesmo. Esteja sozinho, não peça ajuda a ninguém, e seu ser vai se aquietar, livre da escravidão das coisas”. Mathilde sabia, como ela mesma escreveu, que “todo nosso conhecimento, sem o fogo do amor, é arrogância e hipocrisia”. Ela escreveu: “Sem esforço o amor flui de Deus para o homem como um pássaro que plana no ar sem mover as asas. Assim nos movemos neste mundo, unos em corpo e alma, embora externamente separados na forma. Quando a fonte toca a nota, a humanidade canta – O Espírito Santo é nosso harpista e todas as cordas que são tocadas com amor devem soar”.

Tratou também sobre a relação de amor entre Deus e a humanidade, enfatizando claramente a relação de comunhão entre criador e criatura. Anos mais tarde Abraham Kuyper citando João Calvino afirmaria que por meio do sensus divinitatis, Deus “entra em imediata comunhão com a criatura… Em cada momento de nossa existência, toda a nossa vida espiritual repousa no próprio Deus.” Mathilde muito tempo antes já abordara esta comunhão profunda em amor testemunhando pelos seus escritos esta verdade da fé cristã: “E Deus disse à alma: Eu te desejei antes do início do mundo. Eu te desejo agora como você me deseja. E onde os desejos de dois se encontram, lá o amor é perfeito” e a alma respondeu: Senhor, Tu és meu amado, minha saudade, meu riacho fluindo, meu sol, e eu sou Seu reflexo.”

A natureza humana ansiando pela restauração da harmonia da comunhão em amor com o criador é expressa em toda a sua beleza neste poema: “O peixe não pode se afogar na água, o pássaro não pode cair do ar, o ouro não pode ser destruído no fogo, pois dele recebe sua clareza e brilho. Deus concedeu a todas as criaturas o estar de acordo com sua natureza. Como eu poderia resistir à minha? Tive que deixar tudo para me aproximar de Deus, que é meu pai por natureza, meu irmão pela humanidade, meu esposo pelo amor, e eu sou Dele desde a criação.”

O livro de Mathilde pode ser pouco conhecido nos países lusófonos, mas foi uma das inspirações de Dante Alighieri, que a homenageou no personagem Matilda. Uma mulher que viveu intensamente sua vida cristã, seja pelas boas obras, seja pela busca da comunhão perfeita com Cristo.


Lidice Meyer Pinto Ribeiro Doutora em Antropologia, Professora na Universidade Lusófona em Lisboa, Portugal



Trechos de “A Luz que flui da Divindade” (Das fließende Licht der Gottheit) de Mathilde de Magdeburg (tradução livre do alemão para português)

Deus disse à alma: Eu te desejei antes do início do mundo. Eu te desejo agora Como você me deseja. E onde os desejos de dois se encontram, lá o amor é perfeito.

A alma responde: Senhor, Tu és meu amado, Minha saudade, Meu riacho fluindo, Meu sol, E eu sou Seu reflexo.

Deus responde à alma: É a minha natureza que me faz amá-la frequentemente, Pois Eu sou o próprio amor. É o meu desejo que me faz te amar intensamente, Pois desejo ser amado de coração. É a minha eternidade que me faz amá-la por muito tempo, Pois Eu não tenho fim.



O peixe não pode se afogar na água, o pássaro não pode cair no ar, ouro não pode ser destruído no fogo, pois dele recebe sua clareza e brilho. Deus concedeu a todas as criaturas o estar de acordo com sua natureza. Como eu poderia resistir ao minha? Tive que deixar tudo para me aproximar de Deus, que é meu pai por natureza, meu irmão pela humanidade, meu esposo pelo amor, e eu sou Dele desde a criação. Você acha que eu não sinto minha natureza?



Ausência de Deus Ai bendita ausência de Deus, Como estou amorosamente ligada a ti! Minha vontade se fortalece na sua dor E se torna preciosa para mim A longa e difícil espera em meu pobre corpo. Quanto mais me aproximo de ti, Quanto mais maravilhosa e abundantemente Deus vem sobre mim. Pelo orgulho, infelizmente, posso facilmente perdê-la, Mas nas profundezas da pura humildade, ó Senhor, Eu não posso me distanciar de Ti. Quanto mais fundo eu desço, mais docemente Te sinto.


Eu não posso dançar Não posso dançar, Senhor, a menos que você me conduza. Se você quer que eu dance com segurança, Você deve entoar a música. Então vou dançar para dentro do amor, Do amor ao conhecimento, Do conhecimento a alegria, E na alegria além de todas as sensações humanas. Lá eu quero permanecer, mas também quero dançar ainda mais alto.


O deserto tem muitos ensinamentos No deserto, Volte-se para o vazio, Fugindo de si mesmo. Esteja sozinho, Não peça ajuda a ninguém, E seu ser vai se aquietar, Livre da escravidão das coisas. Aqueles que se apegam ao mundo, Esforce-se para libertá-los; Aqueles que são livres, elogie-os. Cuida dos enfermos, Mas vive sozinho, Feliz por beber das águas da tristeza, Para acender o fogo do amor Com os galhos de uma vida simples. Assim você viverá no deserto.


Se eu fosse um homem culto Fui advertida contra escrever este livro. As pessoas disseram: Se alguém não tomar cuidado, Pode ser queimada. Então fiz o que fazia quando criança. Quando estava triste, sempre precisava orar. Curvei-me ao meu Amado e disse: “Ai, Senhor, Agora estou triste por Sua causa. Se eu não receber nenhum conforto Seu agora, Então Tu me enganaste, Porque foste Tu quem me disse para escrevê-lo. ” Imediatamente Deus se revelou à minha alma sem alegria, segurou este livro em Sua mão direita e disse: "Minha querida, não te preocupes demais, Ninguém pode queimar a verdade…. As palavras simbolizam Minha maravilhosa divindade. Flui continuamente Em sua alma de Minha divina boca. O som das palavras é um sinal do Meu Espírito vivo E por meio dele alcança a verdade genuína. Agora examina todas essas palavras - Quão admiravelmente elas proclamam Meus segredos pessoais! Portanto, não tenhas dúvidas sobre ti. ” "Ah, Senhor, se eu fosse um homem religioso culto, E se o Senhor tivesse realizado este milagre único usando-me, receberia honra eterna por isso. Mas como podem acreditar Que construiu uma casa dourada sobre lodo imundo ... Senhor, a sabedoria terrena não será capaz de te encontrar lá.” “... Há muitos professores eruditos nas escrituras que, na verdade, são tolos aos Meus olhos. E te digo mais: É uma grande honra para Mim quanto a eles, e isso fortalece muito o Santo Cristianismo Que a língua iletrada, auxiliada pelo meu Espírito Santo, ensine a língua erudita. ”


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