A violência à mulher estrangeira no Antigo Testamento
- Lidice Meyer
- há 7 dias
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Atualizado: há 6 dias

Até o século 18 era consenso que o pentateuco tivesse sido escrito por Moisés. Foi então que com a análise literária os exegetas perceberam que os livros não só poderiam ter mais de um autor como ter sido redigidos em épocas diferentes. Este estudo recebeu o nome de Hipótese Documental ou Teoria das Fontes e defendia que fragmentos de textos foram aos poucos sendo unificados para compor o Antigo Testamento. Pesquisas assim revelam muitos aspectos culturais da Bíblia e lançam luz sobre certas aparentes contradições no texto.
Curiosamente, enquanto os textos formados até o exílio são favoráveis à mulher, quase todos os textos escritos no período do exílio babilônico e no pós-exílio tratam a mulher estrangeira de forma violenta e até mortal. A derrota de Judá e o exílio foram percebidos pelos autores deste período como um castigo divino pela quebra da aliança feita no Sinai, sobretudo pela idolatria. Os casamentos com mulheres estrangeiras foram tidos como causadores do desvio religioso e estas mulheres passaram a ser descritas como ardilosas, sedutoras e idólatras. Assim Esdras e Neemias, no retorno do exílio, expulsam todas as mulheres estrangeiras como forma de santificação do povo (Ed 10.10-11; Ne 13.23-31).
A única exceção é o livro de Rute, escrito no pós-exílio que tem como protagonista uma mulher moabita que se converte a fé israelita e é abençoada tornando-se a bisavó do rei Davi. Raabe, cuja história está em um livro escrito no período do exílio, é um caso à parte pois apesar de ser inicialmente negativada como como uma prostituta cananéia, redime-se convertendo-se à fé israelita (Js 6.25). As duas histórias mostram a possibilidade de redenção da mulher estrangeira desde que se volta para Yahveh. Todas as demais histórias de mulheres estrangeiras escritas neste período da história de Israel visam mostrar o perigo da união conjugal com uma destas mulheres.
Dentre os escritos do período do exílio, destacam-se as histórias da filistéia Dalila, retratada como sedutora e traidora (Jz 16) e da rainha fenícia Jezabel, que entra para a história como idólatra, assassina e corruptora do esposo, sofrendo uma morte atroz (2 Rs 9.30-37). Sua filha, Atalia é conhecida por sua crueldade e por introduzir o culto a Baal em Judá, sendo também assassinada (2 Rs 11.16). Todas as vezes que um rei de Judá se volta para outros deuses é destacado seu parentesco com uma mulher estrangeira, como Roboão, filho e Naamá a amorita (1 Rs 14.21-22), e Acazias, neto de Jezabel (2 Rs 8.26-27). Os últimos capítulos do livro de Números são tidos como escritos no pós-exílio. No capítulo 25 a narrativa associa a idolatria do povo a relações sexuais com mulheres moabitas (v.1-2). O texto cita Cozbi (engano em hebraico), a filha de um chefe midianita que é morta atravessada por uma lança pelo sacerdote Finéias por se deitar com um israelita (Nm 25.6-8,14-15). O capítulo 31 relata a guerra contra os midianitas que Israel vence matando cinco reis, incluindo o pai de Cozbi. Ao final da guerra Moisés ordena que todas as mulheres midianitas sejam mortas por instigar os homens a adorarem outros deuses (Nm 31.15-18).
Estes textos precisam ser compreendidos no contexto sócio-histórico em que foram escritos. Sua finalidade moral é culpabilizar a mulher estrangeira pelos desvios religiosos dos homens e, portanto, do povo de Israel. O uso descontextualizado destes textos pode levar à falsa ideia de que a violência contra uma mulher que não se enquadre nos padrões religiosos, morais e sociais seja justificada. Cabe ressaltar que em nenhuma das histórias listadas seja Deus que desqualifica ou autoriza a violência sobre a mulher. A violência sempre parte do julgamento dos homens.
Lidice Meyer Doutora em Antropologia, Professora na Universidade Lusófona, Portugal, autora do livro “Cristianismo no Feminino” (Editora Mundo Cristão)
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