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Nem leitura androcêntrica, nem vitimocêntrica: por uma leitura não ideológica da Bíblia!

  • Foto do escritor: Lidice Meyer
    Lidice Meyer
  • 3 de jul.
  • 3 min de leitura

Ultimamente a tradução da Bíblia para o português tem sido revista pois observou-se muitas ocorrências de traduções, tanto do hebraico como do grego, que prestigiam o masculino em detrimento do feminino ou ocultando-o. É o caso das palavras plurais no masculino, que embora sejam inclusivas, dão-nos a sensação de se referirem exclusivamente a homens, como discípulos, anciãos, líderes, e mesmo da palavra homem que muitas vezes é usada para a humanidade como um todo.

Em artigos anteriores demonstrei o caso da palavra hebraica sokenet traduzida para Abisague em 1 Reis 1.2,4 como cuidadora e quando aparece no masculino (soken) em Isaías 22.15, traduzida como “administrador do palácio real”. Também já reportei o caso da palavra grega syzyge usada por Paulo em Filipenses 4.2-3, traduzida na maior parte das Bíblias como companheiro. Ocorre que a palavra syzyge é um adjetivo que pode ser aplicado aos dois gêneros ou mesmo ser um nome próprio. A tradução no masculino limita a ação relatada no versículo além de trazer uma falsa compreensão da necessidade de supervisão masculina às mulheres.  Mas este são apenas alguns exemplos.

Infelizmente, a falta de conhecimento das línguas originais do texto bíblico, aliada a traduções de viés androcêntrico acabam por fomentar compreensões errôneas do texto e a dar voz a posicionamentos estremados.

Chama-se a atenção o crescimento de um movimento dentro da igreja que eu denomino de vitimocentrismo. Ele é formado principalmente por mulheres, embora haja também homens que têm se pautado por esta leitura vitimocêntrica da Bíblia. As principais premissas desta leitura equivocada da Bíblia são: “a Bíblia é um dos textos fundadores da misoginia institucionalizada no mundo ocidental; a Bíblia nasceu dentro de uma cultura patriarcal e foi transmitida por comunidades que usaram o seu conteúdo para definir o lugar das mulheres, para silenciá-las, e muitas vezes, para puni-las; a relação entre espiritualidade e género nas Escrituras parte de uma construção binária e hierárquica que coloca o masculino como mediador privilegiado do divino; as mulheres na Bíblia são tratadas como propriedade, peças numa transação patriarcal — sem voz, sem nome, sem escolha; mulheres na Bíblia são violadas e descartadas sem justiça nem reparação; Jesus é homem e se cerca de 12 homens; Jesus não questiona a masculinidade como norma e nunca denuncia a violência bíblica contra as mulheres; Paulo perpetua a estrutura sistémica de violência de género que atravessa o texto bíblico.”

A leitura vitimocêntrica foca nas situações de violência à mulher destacando estupros, assassinatos e silenciamentos. Não há como negar que estas situações sejam descritas Bíblia. A Bíblia é um livro vivo que relata histórias de diversos períodos históricos, retratando diversas culturas e diversos posicionamentos socioculturais, inclusive em relação às mulheres. E é esta uma das características mais belas do Livro Sagrado. Ao mesmo tempo que temos relatos de violência, temos também relatos de protagonismo feminino e de mulheres exaltadas pela sociedade. A Bíblia traz exemplos de mulheres que oram e evangelizam em público e nas igrejas e também traz textos que as silenciam e descaracterizam. Todos os textos devem ser lidos dentro de sua perspectiva cultual e temporal. A Bíblia não pode ser vista como um manual de normas e conduta, mas como um testemunho da ação de Deus na vida de seu povo e da Igreja.

É hora de revermos muitos dos conceitos errados perpetuados pelas traduções andocêntricas, mas sem o risco de sermos levados ao extremo de desvalorizá-la como texto sagrado, reduzindo a Bíblia apenas à textos de viés patriarcal que vitimizam violentamente as mulheres.


Lidice Meyer   


Doutora em Antropologia, Professora no Mestrado em Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, autora do livro “Cristianismo no Feminino”, Ed. Mundo Cristão.

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