A história de Abraão, Sara e Hagar é fundamental para a origem de duas grandes religiões: Judaísmo e Islamismo. Mas a leitura dos textos de Genesis 16 e 21 pode suscitar muitas dúvidas para alguns. Qual seria a relação entre Sara e Hagar e, entre Abraão e Hagar? Por que Abraão não tentou impedir que Sara expulsasse Hagar e seu filho Ismael de sua casa? Como Sara tinha este poder sendo Ismael o filho primogênito de Abraão, herdeiro portanto da promessa divina?
A antropologia bíblica pode responder a todas estas perguntas por conciliar as questões culturais da época e região onde a história acontece além de analisar o discurso narrativo. Para compreender a relação complicada entre estes três personagens é essencial conhecer alguns costumes da região mesopotâmica. Primeiramente é importante saber que quando um casamento era estabelecido, a família do noivo entregava um certo valor (mohar), muitas vezes em forma de presentes (mattan) à família da noiva, sendo este repassado posteriormente à noiva. Este valor consistia na “riqueza da noiva” e poderia ser utilizado pela mulher como sustento no caso de uma viuvez, divórcio ou para comprar uma escrava. É o que vemos por exemplo quando Eliezer entrega o mohar a Rebeca e presentes (mattan) a Betuel, sua esposa e a Labão (Gn 24.53) e quando Raquel e Lia reclamam por seu pai haver gasto a “riqueza da noiva” que lhes pertencia (Gn 31.15).
Uma mulher estéril poderia oferecer sua riqueza da noiva (mohar) por outra mulher, tornando-se socialmente a mulher-marido daquela que deveria conceber um filho em seu nome. Uma mulher-marido tinha os mesmos direitos legais que qualquer marido e podia pedir indenização em caso de adultério.
É possível que Sara tenha usado a sua riqueza da noiva para comprar uma escrava no Egito, Hagar (Gn 16.1). E quando percebeu que não conseguia conceber um filho de Abraão, ela usou do costume de mulher-marido para tentar conceber por meio de Hagar. Isto pode ser observado na mudança de termos usados para descrever Hagar no decorrer da história. Enquanto em Genesis 16.1, Hagar é chamada de shiphah, termo que designa uma jovem virgem que serve à proprietária em tarefas domésticas, em Gênesis 21, após o nascimento de Ismael, Hagar passa a ser chamada de ‘amah, termo que designa uma escrava-concubina. Hagar é, portanto, considerada a partir do nascimento de Ismael a ‘amah ou concubina, não de Abraão, mas de Sara. Quando compreendemos esta relação, tão estranha para nós nos dias de hoje, começamos a ler a história dos três personagens com outro olhar.
Podemos agora entender por que o anjo se dirige a Hagar: “Hagar, escrava (shiphah) de Sarai, de onde vens?” (Gn 16.8). E porque Abraão, mesmo após se deitar com Hagar ainda a chama de serva de Sara: “A tua serva (shiphah) está nas tuas mãos; procede segundo melhor te parecer” (Gn 16.6). Por isto o próprio Deus consola Abraão pela separação de seu primogênito, contra o que Abraão nada pode fazer: “Não te pareça isso mal por causa do moço e por causa da serva (‘amah). Atende a Sara em tudo o que ela te disser” (Gn 21.12) Sara, socialmente a mulher-marido de Hagar, tinha todo o direito e o poder sobre ela. Embora à primeira vista a passividade de Abraão possa nos espantar, a compreensão das questões culturais envolvidas revela uma situação na qual Abraão não tinha escolhas. A decisão final sobre o destino de Hagar e Ismael estava apenas nas mãos de Sara, a mulher-marido.
Lidice Meyer Pinto Ribeiro
Doutora em Antropologia, professora na Universidade Lusófona, Lisboa-Portugal.
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