Teria Jesus revolucionado o tratamento dado à mulher por agir de forma aberta e sem preconceitos? A pesquisa arqueológica e historiográfica tem nos mostrado uma realidade sociocultural da mulher no séc. I bem diferente do que se supunha. A região da Judéia, berço do cristianismo, já estava desde o séc. IV a.C. sob influência helênica. Apesar do judaísmo pós-exílico ter fortalecido a noção de identidade do povo com práticas separatistas, a convivência com outras culturas, por ser a região local de rotas comerciais, e a continuidade dos casamentos interétnicos abriram um abismo entre a pregação rabínica e a realidade vivenciada pelo povo.
O cativeiro babilônico (609-538 a.C.) fora interpretado pela liderança sacerdotal como um castigo pela desobediência do povo, causada sobretudo pelos casamentos com mulheres de outras religiões (Ne 13.23-30). A mulher, que no judaísmo antigo possuía um papel de importância, agindo em co-liderança familiar e até mesmo como líder civil e militar (Jz 4-5) passou a ser vista como um ser tentador e traiçoeiro a ser controlado. O judaísmo nascido do pós-exílio criou as leis da modéstia (Tzeniut) que dentre outras, visavam proteger os homens da má influência feminina, mantendo-as fora da vista, sob a tutela masculina, na gestão do lar.
Apesar das restrições impostas pela religião, nem todas as judias do séc. I agiam em total conformidade com os preceitos rabínicos. Numerosas colônias judaicas estavam em plena interação com o mundo greco-romano. Sob o governo de Roma as mulheres conquistaram mais liberdades e as fronteiras entre o público e o privado se tornaram mais fluidas. Abriu-se-lhes a oportunidade de participar ativamente da vida econômica das cidades como artesãs e comerciantes, adquirindo sustento próprio e propriedades (Lc 8.3). A legislação romana lhes facultava o acesso à educação e à vida pública e na vida particular podiam participar das refeições familiares junto aos seus esposos. Mesmo não possuindo a obrigação de frequentar a sinagoga ou o templo, tinham lugar reservado para si nos espaços sagrados, podendo até mesmo liderá-los. Inscrições em diversas sinagogas da Ásia Menor datadas do séc. I apresentam nomes de mulheres com os títulos: líder, decana ou presbítera da sinagoga.
A sociedade da Judéia do séc. I mostrava-se confusa e dividida no que tange ao pensamento sobre as mulheres. No judaísmo havia diversas correntes político-religiosas (Fariseus, Saduceus, Herodianos, Batistas, Zelotes, Essênios) que apresentavam interpretações divergentes da Torah a esse respeito. Toda essa efervescência social e religiosa manifestava-se sobretudo em tratamentos ambíguos dados às mulheres. Mesmo com as conquistas das mulheres quanto aos espaços sociais, sua presença, se comparada à dos homens, continuava limitada ou considerada inadequada. Neste cenário fica mais fácil compreender as reações negativas tanto de alguns dos discípulos como de saduceus e fariseus à relação de proximidade que Jesus mantinha com as mulheres. Jesus, apesar de sua criação em ambiente patriarcal e judaizante, agia principalmente por sua natureza divina, sem barreiras em relação aos gêneros. Apesar do ambiente do séc. I ser propício para a participação feminina, ao se colocar sempre em sua defesa e em sua companhia, Jesus manifestou-se em prol da valorização da mulher na sociedade. Como consequência natural, as primeiras igrejas cristãs terão também a liderança feminina (At 12.12; Rm 16.5; 1 Co 1.11, 16.19; Cl 4.15; Fl 2) fruto do respeito e valorização das mulheres no ministério de Jesus.
Lidice Meyer Pinto Ribeiro Doutora em Antropologia, professora convidada na Universidade Lusófona, Lisboa, Portugal
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